Por Raúl Zibechi
O regime de Ortega-Murillo aplica uma política de vingança contra os opositores, particularmente contra aqueles que pertenceram à Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Não parece importante ao regime o fato de que alguns desses oposicionistas tenham arriscado a própria vida para tirar Ortega da prisão durante o processo revolucionário, o que também revela até onde pode chegar o ódio dos ditadores.
O caso da ex-comandante Dora María Téllez, a prisioneira mais emblemática, presa por 605 dias, é uma mostra desse ódio. Na sua cela na prisão de El Chipote, a escuridão era quase que total, havendo apenas uma luz “que não lhe permitia ver bem a mão”; nem sequer lhe permitiam que soubesse a hora, não podia ter livros, papéis, nem lápis, como relatou em sua primeira entrevista (El País, 10/02/2023).
Dormiam em colchonetes sobre o piso frio, não tinham toalhas, se secavam com as próprias roupas. Téllez lembra que acabou perdendo a voz porque falava somente um minuto a cada dia, com os guardas. Ressalta que as mulheres tinham um tratamento diferente, mais cruel e rigoroso. Durante os três primeiros meses não recebeu visitas, que depois foram permitidas, mas de forma irregular, sem nunca saber quando as receberia, o que aumentava a incerteza dos prisioneiros. Ela conta que os homens nunca estiveram em regime de isolamento mais de dois meses, enquanto que as mulheres eram assim mantidas durante todo o tempo, o que para ela é um exemplo do “ódio visceral” dirigido às mulheres e, em particular, dirigido às feministas.
Controle social
O tipo de controle tem sido muito diferente em relação às ditaduras que conhecemos no Cone Sul da América Latina e se intensificou logo após a revolta de 2018. Um dos dirigentes da oposição, o politólogo Guillermo Incer Medina, membro da organização oposicionista Unidad Azul y Blanco, diz que durante meses de assédio a Polícia Nacional lhe ofereceu um mês em que o assédio foi feito em sua casa de forma ininterrupta. “Entre seis e oito policiais, às vezes a paisana, outras de uniforme, chegam todos os dias desde as seis da manhã até o meio-dia ou até o final da tarde. A ordem é não me deixar sair de casa, interrogar todo mundo que chega e informar os meus movimentos”, relata (Revista Envío, Nº 470, maio de 2021).
A modalidade “a casa como cárcere”, situação vivenciada hoje por centenas de pessoas, implica confinar o indivíduo na sua casa com vigilância policial e de vizinhos simpáticos à ditadura, paramilitares ou militantes da FSLN. Este tipo de assédio gera um forte dano sobre o tecido social fazendo emergir as diferenças entre vizinhos. Segundo Medina, “os simpatizantes do regime fazem questão de estigmatizá-lo como ´golpista e terrorista´, fazem questão de notar que aqueles que ´arruinaram a paz´ estão agora controlados e que não permitirão novamente outra baderna provocada pelo império e pela direita”.
Os que continuam apoiando o sandinismo, estimados em menos de 20% da população segundo os institutos de pesquisa, “colaboram com as polícias trazendo-lhes comida, bebidas e emprestando-lhes o banheiro às vistas e paciência dos outros vizinhos”. O relato de Medina eleva a cifra de afetados de modo vertical pois considera que o assédio a uma família afeta todo um quarteirão. Conclui indicando que na Nicarágua pode haver até 60 mil pessoas afetadas indiretamente pelo assédio policial aos opositores, já que em torno de cada casa e família vigiada se movimentam patrulhas e cães da polícia, e que as meninas e meninos não podem mais sair para brincar na rua e toda a vida nas redondezas fica afetada.
Burguesia emergente
Quando voltou ao governo em 2007, Ortega dedicou-se a construir “uma aliança estratégica com o grande capital privado e o Exército, e a colocar em ação uma rede de dispositivos de vigilância e controle social para conter qualquer expressão de descontentamento” (Nueva Sociedad, Nº 300, julho-agosto de 2022). Mas essa aliança foi lubrificada com os fundos provenientes da cooperação venezuelana, estimando-se que cerca de 80% dos mais de 3,4 bilhões de dólares “foram privatizados em um período de oito anos através de uma holding chamada Alba de Nicaragua SA (Albanisa), administrada diretamente por familiares e pessoas de confiança de Ortega e Murillo, sua esposa, primeira-dama e porta-voz do governo”.
A ex-comandante Mónica Baltodano estima que o grupo em torno de Ortega e Murillo está reduzido a cerca de 200 fiéis que, no entanto, têm muito poder já que “estão com um grande capital pois agora formam um grupo capitalista importante, e o governo representa essa comunidade de interesses que tem hoje a nova oligarquia sandinista junto à oligarquia tradicional e o grande capital transnacional” (Envío, Nº 382, janeiro de 2014).
Esse grupo de fiéis (uma nova burguesia de fato) conseguiu controlar, com o apoio do Estado, a distribuição de combustíveis, a geração e distribuição da energia elétrica, a exportação de café, carne, leite, açúcar, madeira e outros produtos estratégicos para a economia nicaraguense. Os militares, por sua vez, participam nestes negócios através do Instituto de Previsión Social Militar na construção e na exportação de madeira e carne, com a anuência do governo Ortega-Murillo.
Pelas investigações de diversos meios de comunicação, a fortuna de Ortega supera os 2,5 bilhões de dólares por sua participação na Bancorp e Albanisa, um grupo de empresas com negócios na importação de petróleo venezuelano (Confidencial, 9 de abril de 2016). O que é considerado o maior esquema criminoso da história do país, consistiu na apropriação dos fundos de cooperação venezuelanos, através de ambas as empresas.
“A Albanisa foi criada como um subterfúgio fraudulento para privatizar os fundos de cooperação petroleira venezuelana em favor de Ortega“, indica o informe do Confidencial com base em dados do Banco Central. Os fundos foram canalizados através de empresas privadas, apesar de terem a sua origem em um convênio internacional ratificado pelas assembleias legislativas da Nicaragua e da Venezuela.
A Albanisa tem dois sócios: a Pdvsa, com 51%, e a Petronic, con 49%. “O montante total dos créditos canalizados pela Albanisa, em junho de 2018, aproxima-se de 4 bilhões de dólares. Nos tempos das vacas gordas eles atingiram em média 500 mihões de dólares anuais, livres de poeira e palha. Um capital líquido que Ortega administrava de modo arbitrário como um capital privado” (Confidencial, 13 de fevereiro de 2019).
Graças ao apoio do poder político, a Albanisa se aventurou em uma ampla gama de negócios: Albageneración, que rapidamente se transformou na principal empresa geradora de energia elétrica; Albadepósitos, dedicada à importação, armazenamento e distribuição de petróleo e derivados; Albaforestal, cujo negócio é a madeira; Albaequipos (Econsa), empresa de serviços e construção. Segundo os especialistas, a joia da coroa orteguista é o Banco Corporativo, Bancorp, responsável por administrar o conjunto das “empresas Alba”.
Quase todos os filhos do casal Ortega-Murillo participam das empresas. “Oito dos nove filhos do casal presidencial nicaraguense têm posto de conselheiros, controlam o negócio da distribuição do petróleo e dirigem a maioria dos canais de televisão e companhias de publicidade que se beneficiam de contratos estatais” (El País, 18 de abril de 2021). Mas estão sujeitos aos ditames de Rosario Murillo, que já excomungou a filha mais velha, Zoilamérica, por ela ter denunciado o seu padrastro por abuso sexual em 1998, o que a levou ao exílio na Costa Rica desde 2013 devido à perseguição de sua mãe.
A ilusão do poder
De acordo com a pesquisadora nicaraguense Elvira Cuadra Lira, a ditadura complementa os acordos por cima com empresários com “um sistema de dispositivos para a repressão, a vigilância e o controle social, com o propósito de conter qualquer expressão de descontentamento entre a população” (Nueva Sociedad, Nº 300). Além de utilizar a polícia e o exército para essas tarefas de controle, foram criados coletivos paraestatais como os chamados grupos de choque – organizados com jovens simpatizantes que desde 2008 saíram às ruas para espancar e agredir os cidadãos que protestavam -, os Conselhos do Poder Cidadão e os Comitês de Liderança Sandinista, organizados em bairros e instituições públicas para monitorar pessoas descontentes com o governo“.
Até a revolta jovem e popular de 2018 Ortega manteve a estabilidade do país e mesmo gozou de ampla simpatia internacional, tanto das esquerdas do continente quanto da Casa Branca. Destaca-se o contundente apoio do FMI à ditadura, que se mantém e renova até hoje. Como conclui Cuadra Lira, a ditadura era funcional já que “permitia manter a estabilidade e o crescimento econômico, bem como a formalidade democrática institucional”.
Porém, em abril de 2018 tudo mudou quando a insatisfação ganhou as ruas em protesto contra o anúncio de reformas da previdência social que atingiam aposentados, contribuintes e empregadores. A repressão fez mais de 300 mortos, 1.200 feridos e centenas de presos. O controle social tornou-se asfixiante ao ponto de mais de 100 mil pessoas terem sido exiladas e 300 mil terem saído do país desde 2018. Pelo menos 120 jornalistas nicaraguenses foram para o exílio e dezenas de religiosos fugiram ou foram banidos. O Vaticano finalmente rompeu com Ortega e este suspendeu as relações entre ambos.
Por outro lado, a ruptura com o empresariado, na raiz da crise pós-2018, poderia ser o prelúdio da chegada dos capitais chineses que podem ocupar um lugar privilegiado na Nicarágua. Deve-se lembrar que o isolamento interno é quase total, a tal ponto que nas últimas eleições presidenciais 80% dos votantes se abstiveram de comparecer às urnas, mesmo com ameaças e pressões, de modo que o apoio de grandes potências como a China ou a Rússia pode ser decisivo para o futuro do regime.
Ainda que alguns pensem que Ortega está completamente isolado a ponto de cair, não podem ser subestimados os apoios que ele ainda mantém. Em particular entre uma parte dos governos de esquerda (Venezuela, Cuba e Bolívia), mas também entre movimentos e partidos que preferem o silêncio à condenação. Não são poucos, mas já não se atrevem a defender diretamente a ditadura nem a apoiar as evidentes violações de direitos humanos, se defendendo com a alegação de que não conhecem muito bem a situação, ou de que o imperialismo pode se beneficiar das críticas a Ortega e Murillo.
Uma ética de “virar a cara para outro lado”, que causa um dano enorme ao povo nicaraguense, e que também está afundando a credibilidade dessa esquerda estatista que, um século depois, está disposta a seguir o mesmo caminho de Stálin na União Soviética.
Traduzido do ESPANHOL por Passa Palavra
As obras que ilustram o artigo são de June Beer (1935-1986)
Essa espiral sem fim jamais será quebrada por dentro:
Todo governo acaba em fascismo. A esquerda falha, então eles votam na direita. A direita falha, então eles votam na esquerda. A esquerda falha, então eles votam na direita. A direita falha, então eles votam na esquerda. A esquerda falha, então eles votam na direita. A direita falha, então eles votam na esquerda.
O mais otário dos proletários sabe, os intelectuais orgânicos ignoram: esquerda e direita são a polaridade pseudo-antagônica do kapitalestado.